Reconhecimento na ciência: a revolução verde de Ana Primavesi

Marilice Daronco (Especial)

Reconhecimento na ciência: a revolução verde de Ana Primavesi

Foto: Arquivo pessoal

São Paulo, 18 de dezembro de 2015. Subo no ônibus para o Bairro Campo Belo, com a alma povoada de sonhos. Foram vários meses à espera da oportunidade de conversar pessoalmente com a pesquisadora considerada mundialmente como a Mãe da Agroecologia, Ana Primavesi, para a pesquisa de mestrado sobre o cinema pioneiro em Santa Maria.


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Caminho pelas ruas bonitas e arborizadas da Zona Sul imaginando o que posso encontrar pelo caminho. Que memórias em seus 95 anos ela estaria disposta a compartilhar comigo? O que recordaria daqueles anos de 1960, quando ela e outros profissionais da Universidade Federal de Santa Maria realizaram o primeiro documentário com o tema da agroecologia no mundo?

 
Quem me recebe na porta é Carin Primavesi Silveira, um dos três filhos de Ana. Ao saber que sou de Santa Maria, onde ela e o marido Artur Primavesi viveram de 1961 a 1974, Ana me presenteia com o sorriso que era uma das suas marcas pessoais (pelo menos para aqueles que não ousavam desafiar o seu lado mais afiado e sem papas na língua).

 
Sentamos lado a lado no amplo sofá da sala, nós três e o papagaio que a chama de “vovó” e dá risada, arrancando gargalhadas do trio. Bebemos uma limonada recém feita – Ana era apaixonada por frutas e alimentos naturais – e conversamos. Não é preciso muito para perceber que, por mais que o seu corpo fosse o de uma mulher que se aproximava de um século de vida, a mente estava ativa, viva, repleta de emoções e lembranças encantadoras. Penso comigo mesma: “que sorte a minha estar frente a frente com a história da biodiversidade no país!”.
Sem medo de cometer o crime da não objetividade, confesso: Ana Primavesi era uma presença magnética, capaz de cativar qualquer um com sua paixão pelo solo e pela agricultura sustentável.

 
Faço para ela o desafio: assistirmos juntas ao seu filme A vida do Solo (1968). Ana responde com uma humildade que chama a atenção dado o reconhecimento internacional de seu trabalho:
– Isso já faz muitos anos. Faz tanto tempo que produzimos esse filme. Não considero que tenha sido uma ideia fora do comum. Era uma tentativa de fazer algo. Naquela época era normal que a gente tentasse buscar alternativas para mostrar às pessoas o que queríamos dizer com determinados conceitos. Porque era tudo muito novo. As pessoas nem sempre entendiam o que queríamos dizer quando falávamos que havia vida no solo.

 
Carin coloca à nossa frente seu notebook e começamos a assistir ao filme. Cada detalhe gera comentários maravilhosos da pesquisadora, que começa a lembrar de quando escreveu o roteiro, pergunta para Carin quem tinha sido o câmera e lembro que foi José Feijó Caneda. Com as mãos gesticulando para todo o lado, como um maestro que rege lembranças, Ana recorda as invencionices de Caneda para poder registrar, quadro a quadro, os desenhos criados por Orion Mello e Joel Saldanha, para a animação.

 
Dou-me ao direito de ficar encantada afinal, nem o suíço Bruno Edera, ao registrar a existência do documentário em seu livro Full Length Animated Feature Films (1984), considerado por muito tempo a bíblia da animação no mundo, escapou da surpresa em saber que em uma universidade do interior do Rio Grande do Sul havia sido feita uma animação, em longa-metragem, colorida, por uma equipe de uma universidade.

 
Ana lembrava de cada detalhe:
– Não era simples explicar que o solo era vivo, que havia uma série de processos acontecendo no interior dele e que à medida que nós, as pessoas, fazíamos determinadas coisas, como as queimadas, fazíamos com que o solo perdesse a sua força – explicou Ana.

Contentamento
Não contei quantos sorrisos nasceram no rosto da pesquisadora austríaca ao assistir a aquele documentário, mas era incrível ver a felicidade estampada entre as rugas da mulher que revolucionou a agricultura ao enfrentar a indústria dos agrotóxicos e dizer que esses químicos estavam prejudicando a todos.

 
A casa de Ana era um reflexo fiel de sua personalidade: acolhedora, repleta de memórias, de livros, plantas e fotografias, cada canto parecia contar um pedaço da trajetória da família.
– Deixar o campo foi uma das coisas mais difíceis que já fiz. A agricultura não é só um negócio. É a base de toda a vida. Sem o campo, não há comida, não há água. Por isso, o cuidado e o respeito pelo solo são fundamentais – disse ela, olhando como se tentasse vislumbrar os vastos campos verdes de sua antiga vida no sítio de Itaí, no interior de São Paulo, onde morou por 32 anos, tempo suficiente para transformar uma área degradada em um solo produtivo.

 
Aliás, foi numa volta da chácara que, em 2010, nos falamos pela primeira vez. Naquela época, estava escrevendo sobre o casal para o Diário de Santa Maria para um caderno especial sobre os 50 anos da Universidade Federal de Santa Maria. Os dois personagens que chegaram à cidade a convite do fundador da UFSM, Mariano da Rocha, em 1961, não só foram professores pioneiros do Curso de Agronomia, mas também fundaram o Instituto dos Solos e Culturas, um campo experimental, um laboratório de solos e a pós-graduação em Biodinâmica e Produtividade do solo.

 
– Em Viena, onde estudamos, aprendia-se o universal. Em Santa Maria, ensinávamos o regional, conceitos e práticas que os alunos pudessem levar para as suas comunidades e transformá-las – contou Ana, mostrando como já praticavam o importante e tão almejado tripé: ensino, pesquisa e extensão.

 
Graduada em Agronomia e doutora pela Universidade Rural de Viena, Ana se destacou em um campo dominado por homens. Os títulos não lhe tiraram a humildade ao compartilhar conhecimentos e a capacidade de explicar, com linguagem simples, para que tanto os estudantes quanto os produtores rurais compreendessem seu amor ao solo.


Uma vida inteira dedicada à biodiversidade

Um ano depois daquela entrevista, a pesquisadora Virgínia Mendonça Knannen, que foi amiga pessoal da família e teve o privilégio de conviver seis anos com Ana Primavesi antes de escrever seu livro de memórias, lançou a biografia de Ana. E ela é impecável na narrativa. Em cada detalhe faz os leitores compreenderem o que fez daquela mulher que nasceu no castelo de Pichllofen, na Áustria, se transformar em uma das maiores referências mundiais na sua área.

 
Ana Primavesi foi uma das primeiras a defender a agricultura sustentável, focada na saúde do solo e no respeito ao meio ambiente. Seu livro, Manejo Ecológico do Solo, tem mais de 20 edições e, até hoje, é uma bíblia para os que buscam uma forma mais harmoniosa de lidar com a terra.

 
Mas para chegar até aí o caminho não foi nada fácil. Annemarie Baronesa Conrad, seu nome antes de nascimento, tinha só 18 anos quando seu país foi invadido pelo exército Alemão em 1938, assistiu à ascensão do nazismo, vivenciou a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e, inclusive, esteve em um campo de concentração. Para terminar a faculdade, teve que cumprir nove meses de trabalho braçal no campo. Os nazistas impuseram isso para manter os jovens longe das universidades.

 
As dificuldades e a dedicação tornaram Ana uma mente notável, uma mulher de força incomum e um ser humano raro. Até a sua morte, em 2020, aos 99 anos, ela enfrentou todas as perdas que uma pessoa pode sofrer: irmãos, primos e tios na Segunda Guerra. Posteriormente, pai, num campo de concentração, a mãe, o marido. E seu caçula Arturzinho, que faleceu aos 32 anos em um acidente de trânsito.
Ana se mudou para o Brasil com Artur Primavesi, em 1948, em busca de um novo começo após as turbulências da guerra. No país, os dois foram grandes parceiros não só de vida, mas na extensa produção acadêmica que se contrapôs ao avanço desenfreado do agronegócio.

 
Os três filhos do casal – Odo Maria Artur Primavesi, Carin Ana Claire Primavesi e Artur Maria Primavesi – chegaram a crescer e a estudar em Santa Maria onde se formaram em Agronomia, Engenharia e Medicina.

 
O casal Primavesi trazia à Universidade de Santa Maria pesquisadores e cientistas de renome, e passou a escrever e publicar trabalhos importantíssimos. Foi para um dos encontros internacionais realizados na cidade que o documentário “A vida do solo” foi feito. Desde que foi disponibilizado no YouTube, há sete anos, o filme já conta com mais de 132 mil visualizações.

 
A família Primavesi foi embora de Santa Maria em 1974 sem o reconhecimento que merecia. Três anos depois, Artur morreu devido a um câncer de próstata.

 
Autora de dezenas de livros e centenas de artigos acadêmicos, a pesquisadora foi também fundadora da Associação da Agricultora Orgânica (AOO) e, ao longo de sua carreira, recebeu uma série de prêmios, como o One World Award, da Federação Internacional dos Movimentos da Agricultura Orgânica (IFOAM).


O Legado

Em 2015, a última vez que nos vimos pessoalmente, nos despedimos com um abraço. Ao sair, olhei para trás e vi Ana, a mãe da Agroecologia, sentada em sua poltrona, ainda imersa em pensamentos sobre os campos que ela tanto amava. A luz dourada que entrava pela janela iluminava seu rosto, emoldurando a figura da eterna guardiã do solo, é assim que sempre lembrarei dela, inspirando futuras gerações a cuidar da terra com o mesmo amor e respeito que ela dedicou ao longo de sua vida.

 
Depois de um mergulho no passado, para contar um pouco sobre Ana, peço permissão para um mergulho para o futuro:
Santa Maria, 31 de julho, Theatro Treze de Maio. Essa será a data em que 10 mulheres, pesquisadoras, receberão o Prêmio Ana Primavesi. Será um momento de coroar mulheres que desenvolvem trabalho de ponta no ensino, na pesquisa e na extensão. Mas, também, será a oportunidade de a cidade reconhecer como tudo o que Ana fez se transformou em um solo fértil para tantas outras pessoas.

 
Em uma coluna para o Guia Rural, em 1988, Ana escreveu: “Sabe de uma coisa? A gente tem de tratar a terra como se fosse uma pessoa querida. E aí, ela agradece”. Nós é que agradecemos, Ana. Agradecemos por sua paixão, seu compromisso e por ser uma pesquisadora sem igual, cuja vida e obra continuam a inspirar e guiar muitos em direção a um futuro mais sustentável e respeitoso com o nosso planeta.


1º Prêmio Ana Primavesi  
O 1º Prêmio Ana Primavesi é uma iniciativa do Grupo Diário, com o apoio de UFSM, UFN, prefeitura de Santa Maria/Secretaria de Educação, Ministério Público da Educação, Coordenadoria Regional da Educação, Câmara de Vereadores de Santa Maria (Procuradoria Especial da Mulher), OAB SM, Comissão Municipal da Mulher, Delegacia da Mulher, Theatro Treze de Maio, Sinepe, Adesm, Portela Advocacia, Habituée, Casa da Audição e Due Fratelli.


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